por Patanga
Pode parecer clichê de protagonista de um filme de ação eu dizer isso, mas realmente chega uma hora em que paramos de retorcer como minhocas moles (!) e encaramos certos desafios. Isso acontece em diversos momentos de nossas vidas. (Ou penso eu.)
(Já aviso que este artigo é para "guerreiros" - espero que compreendam!)
Um desses momentos que tive em minha vida aconteceu através do esporte. Desde que comecei a meditar, também comecei a praticar esportes. Em particular, a corrida.
Com alguns meses, apareceu meu primeiro grande desafio. Comecei a ter dores em alguns lugares. Primeiro aqui, depois ali. O corpo ia se acostumando e as dores passavam. Novas surgiam. Com mais algum tempo, essas dores estacionaram em um lugar apenas, na parte interna do joelho esquerdo.
Essa experiência é minha companheira por quase 10 anos. Mesmo assim, consegui correr algumas maratonas. Correr não é bem o termo, mas eu pude correr e andar as maratonas. Enquanto treinava em casa, dificilmente conseguia completar 15km antes da perna esquerda ficar rígida, sem conseguir dobrar o joelho a contento. Alguns dias corria 13km e caminhava os dois últimos. Outros dias conseguia completar os 15. Em outros, talvez 9 e tinha que andar o resto, de novo com o joelho travado.
Mas, como disse, chega um momento onde certas coisas têm de mudar.
Todavia, essa mudança não é a mudança física. A transformação do físico é a última a acontecer. Grandes Mestres espirituais transformaram o físico. Mas eles, como seres completamente identificados com a consciência Divina e terrena, também se permitem alguma limitação. Se não, não haveria Jogo.
Para alguém que começa na vida espiritual, as mudanças são na consciência. (E para deixar bem claro, é onde eu me encontro.) Grandes efeitos, como aqueles que aparecem nos desenhos animados, são para a nossa mente de desejos. Não são para o nosso coração de aspiração.
Assim, transformando pequenas partes da minha consciência, mais uma nova pequena esperança começou a florir em meu coração. Algo que despertou me indicava que eu devia prosseguir no meu caminho de corrida - a corrida como um símbolo da espiritualidade -, cruzando pelas dificuldades.
Mesmo sem conseguir correr uma maratona de verdade, eu sabia que tinha de ir além. Eu me inscrevi para uma ultramaratona, de 47 milhas (75km) e em percurso dificílimo, em homenagem ao aniversário do meu Mestre, Sri Chinmoy. Treinei pouco, considerando a grandiosidade da prova. Foi assim porque eu tinha uma sensação de que não seria uma prova desportiva. Era parte da minha caminhada espiritual. Por isso, naquele momento, não seria o treino de corrida que iria realmente me levar adiante. Seria uma nova postura, uma nova abordagem da vida.
A corrida começou à meia-noite, zero-hora do dia 27 de agosto, aniversário do nascimento de Sri Chinmoy. Eu dormi cerca de uma hora e meia antes da prova, e acordei no meio do sono por causa de uma dor lascinante no joelho esquerdo. Era tão forte que acordei quase gritando. Mas tive a sensação, por experiências anteriores, de que era uma das forças contrárias ao progresso, tentando me intimidar.
O percurso da prova é 1600 metros ao redor de uma quadra, com subidas e descidas curtas e íngremes, piso inclinado, curvas em cotovelo, meio-fio para saltar e outros acidentes.
Já durante a prova pude constatar que a minha dor companheira não apareceu com a incapacidade de costume. Tive outras dores, mas elas não tinham a mesma capacidade de obstar o meu progresso. Os quilômetros foram passando, não sem dificuldades, mas continuavam passando. Minha mente passou pelo quilômetro 42, a maratona, sem dar grande atenção. A meta estava além.
Chegando às sete horas de corrida, cada volta minha estava bastante lenta. Cheguei a fazer as contas e percebi que não completaria a prova em 10 horas, que era o tempo máximo. Pensei em tentar aumentar o ritmo, mas parecia impossível, após sete horas. Tinha começado a correr à meia noite. Agora, o Sol já tinha nascido, e o dia raiado. E eu teria de correr mais rápido.
Dois colegas italianos do Centro Sri Chinmoy estavam contando as minhas voltas, e também me instigaram a correr mais rápido. Após mais meia hora, chegou um ponto onde eu tinha a certeza de que tinha de tentar.
Aumentei o ritmo apenas um pouco. Deu certo. Minhas voltas levavam 16 minutos incluindo alimentação, hidratação, caminhadas e banheiro. Passaram a diminuir pouco a pouco. 15. 14. 13 minutos e 30 segundos. A cada volta, eu corrida mais rápido, andava menos, o fim se aproximava, e eu tinha mais energia.
Nas últimas poucas voltas, tanta mudança havia ocorrido em mim que, ao chegar nelas, eu comia menos, bebia menos, corria mais rápido e parei completamente de andar. Havia mais dor, mas eu sabia que era uma experiência pela qual eu passava, não uma limitação.
"Above the toil of life my soul is a bird of fire winging the Infinite."
- Sri Chinmoy
Na última volta, senti quase um pesar ao iniciá-la. Era como se eu estivesse prestes a dar um golpe de misericórdia num inimigo muito corajoso, cheio de valor e honra. Era algo que eu tinha de fazer, mas, se pudesse escolher, faria diferente. Eu o deixaria vivo para lutar novamente. Eu continuaria correndo mais tempo, apesar de horas antes estar torcendo por esse momento, o fim, chegar.
Terminei a prova em 9h58min e alguns segundos, um minuto e meio antes do limite. No dia seguinte, naturalmente, estava com os pés inchados e dores diversas, mas nenhuma incapacitante. Estava muito feliz, e muito diferente também. É como se fosse uma experiência para outra parte da existência, e não para o corpo. Uma experiência de consciência. De progresso. De gratidão.
Nos dias seguintes, sonhei seguidamente com a prova. E procurei novas provas para fazer. Novos horizontes para a consciência almejar.
Isso em uma corrida de 75km em dez horas. Se quiserem ver algo realmente espiritual, vejam a Self-Transcendence 3100 mile race, com 5000km.
Fico feliz em escrever aqui coisas boas que me aconteceram. Espero que possam também receber algo desta história.
Do irmão de vocês,
Patanga